Ouguela (Alentejo, Portugal) em baixo; Alburquerque (Badajoz, Espanha) ao fundo.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

A lição do aprendiz (Mia Couto)

Fotografia de José Carlos Costa


São denominadas em Portugal literaturas africanas de expressão portuguesa as obras daqueles autores de Angola, Moçambique, Cabo Verde, a Guiné-Bissau, S.Tomé e Príncipe, que escrevem em português.

Sem dúvida, um dos maiores nomes destes autores é Mia Couto, nascido em Mocambique. Este conto, esta "crónica", intitulado "A lição do aprendiz", pertence ao seu livro Cronicando.Vamos ler o trecho inicial.

Após a independência de Portugal, algumas das suas antigas colónias, como Angola e Moçambique, conheceram virulentas guerras civis. Isso vê-se reflectido em "A lição do aprendiz".

* * * * *


Apresentou-se com uma carta na mão. O barbeiro Lázaro interompeu a tesouração e foi à porta. O miúdo estendeu a carta com a mão esquerda segurando respeitos no braço direito. Era uma missiva triste com notícias escuras dos lados da guerra. O rapaz que ali se apresentava ficara sem ninguém, a família dele era só pena dos outros.
O barbeiro fingiu demorar-se na leitura. Tinha receio de enfrentar aqueles olhos órfãos, parentes da morte.
Quem escreveu este bilhete foi o meu primo Ezequiel?
O miúdo acenou com a cabeça, dispensando a voz.
E queres trabalhar aqui comigo, aprender o serviço de barbeiro?
Agora foram os ombros que responderam um encolhimento.
Como te chamas?
Chamava-se Antoninho. O barbeiro aprontou-lhe uma condição. Pequena mas constante. Antoninho trabalharia ali mesmo, ajudante. Dormiria na própria barbearia. Chegada a hora de fechar, retiravam-se as almofadas da cadeira e estendiam-se no chão. Ele deitava naquele sossego frio, até dava jeito para espantar a ladroeira.
O menino foi ficando, vassourando os intervalos da clientela, lustrando o espelho sacudindo os panos. Nunca de sua língua se confeccionava palavra. Lázaro empurrava-lhe para a vontade, com ordem amiga:
Está atentinho, veja como eu faço. Um dia destes vais poder cortar cabelo tu também.
Mas o miúdo parecia sempre longe, dissidente da infância, olhos exilados na rua por onde a vida se derramava quente e luminosa. Fazia até medo contemplar aqueles olhos cheios dele. Toda a alma daquele pequeno corpo estava ali naqueles dois luzeiros, pareciam feitos de água incendiada. Antoninho amealhava silêncios, sem que ninguém suspeitasse que sonho brincava dentro dele.